Duas canções para Carlos Drummond de Andrade - Odylo Costa, Filho
1
Canção obscura
dos olhos fundos
na terra nítida
vai navegando
soluço inquieto
mágoa secreta
nos olhos fundos
cores e sombras
das madrugadas
as bicicletas
os trens passando
bondes e nuvens
quotidianos
que companhia
no desespero!
Homem sozinho
que estás presente
nas nossas noites
todas iguais,
esquerdo e simples
como uma foice
que teu destino
nos justifique
nos acompanhe
nos abençoe.
2
Paciência deslumbrada
caindo gota a gota,
noite e dia polida,
muda-se em sal da infância
que tuas vacas lambiam
e nos devolves nítido
em chuva dulciamara
mas fecundando a terra
das roças do amanhã.
Ó menino, ó vaqueiro,
que tens nas magras mãos
o segredo do tempo
sempre ressuscitado,
apascenta nas folhas
de papel de jornal
teu rebanho de seres
no campo da montanha
e derrama na estrada
como leite na cuia
essa carícia – o vento,
esse poder – a vida,
pedra, ferro, ilusão
bicicleta rodando
contra a noite esquecida
para acordar os dias
e soletrar com os homens
a nova madrugada,
estrela da manhã,
cantiga do horizonte,
rasgada para o céu.
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Odylo Costa
Meio-dia - Ronald de Carvalho
Choque de claridades
Palmas paradas
Brilhos saltando nas pedras enxutas.
Batendo de chofre na luz
as andorinhas levam o sol na ponta das asas!
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Infância - Henriqueta Lisboa
E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?
A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;
nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.
A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!
A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...
A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!
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Henriqueta Lisboa
Roteiro do silêncio - Hilda Hilst
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio
Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.
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Canção breve - Eugénio de Andrade
Tudo me prende à terra
onde me dei:
o rio subitamente
adolescente,
a luz tropeçando nas
esquinas,
as areias onde ardi
impaciente.
Tudo me prende do
mesmo triste amor
que há em saber que a
vida pouco dura,
e nela ponho a
esperança e o calor
de uns dedos com
restos de ternura.
Dizem que há outros
céus e outras luas
e outros olhos densos
de alegria,
mas eu sou destas
casas, destas ruas,
deste amor a escorrer
melancolia.
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Ao Tempo - Dante Milano
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando…
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
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Dante Milano
Morte morreu - Adélia Prado
Quando o ano acinzenta-se em
agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já
reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos queridos
e os passarinhos que ainda
vão nascer.
“Ó morte, onde está tua
vitória?”
Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências
sensatas.
Todos pra janela, espiar as
goteiras:
"Chuva choveu, goteira
pingou
Pergunta o papudo se o papo
molhou".
Pergunta a menina se a vida
acabou.
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Adélia Prado
Gaita de lata - Cecília Meireles
Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua
face,
desse teu riso de
fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem
horizonte.
Como, porém, já não
medra,
cada um com a sorte
sua!
(Não nascem lírios de
lua
pelos corações de
pedra...)
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Bailado - Nádia Dantas
O bailado das chamas
brilha na noite
e a menina sonha com o amanhecer.
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Hilda Hilst
"De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco."
Carlos Drummond de Andrade
O que ficou de mim
além de eu mesma
não o sei.
Nem o digas às crianças
porque no que ficou
a palavra de amor
está partida
imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.
Nem o diga aos homens
Era o rio
e antes do rio havia areia.
Era praia
e depois da praia havia o mar.
Era amigo
ah! e se tivesse existido
quem sabe ficava eterno.
Nada ficou de mim
além de eu mesma.
Tênue vontade de poesia
e mesmo isso
imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.
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Hilda Hilst
No descomeço era o verbo - Manoel de Barros
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe
que o verbo escutar
não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
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Manoel de Barros
Chuva Interior - Mário Chamie
Quando saía de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.
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Mário Chamie
Os mais velhos - José Saramago
São de pedra, os mais
velhos. Ermos, sós.
O gesto hirto. As mãos
perdidas
Da remota brandura,
como pranto
Vidrado e recolhido,
água rasa:
Nada o mundo vos deu:
(sois vós, e basta).
Inocente da morte que
aceitais,
Recolho dessas mãos de
cardos secos
A herança dos nardos
imortais.
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José Saramago
A dor tem um elemento de vazio - Emily Dickinson
A dor - tem um elemento de vazio -
Não se consegue lembrar
De quando começou - ou se houve
Um tempo em que não existiu -
Não tem futuro - para lá de si própria -
O seu infinito contém
O seu passado - iluminado para aperceber
Novas épocas - de dor.
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